quinta-feira, 24 de abril de 2008

ECO DE ITÁLIA

Tantas vezes contei o episódio, que achei por bem escrever uma crônica. O destino, significando sina e objetivo, me levou, com meu filho Yuri, para a Itália, especificamente, para Bologna, no mês de novembro de 2007. Por motivos familiares e burocráticos, fomos atrás das raízes do jus sanguinis, assessorados por um escritório paulista que agora fazia a tramitação naquela localidade (antes, em Pisa).

A viagem foi boa, a finalidade, atingida, e também deu para fazer um pouco de turismo, visitando Venezia ainda em tempo de Biennale. E, culminando, tivemos um encontro com um homem notável.

Para situar o contexto, uma descrição da paisagem urbana. Bologna é pequena e ordenada, velha de séculos, tão bem conservada que integra a modernidade de forma equilibrada, mantendo, numa linha de edificação uniforme, todas as casas de não mais de dois andares pintadas de vermelhão, combinando com os telhados. Não apenas por isso é chamada de Cittá Rossa, na lembrança da heróica resistência ao nazismo por parte da população que, por décadas, elege prefeitos comunistas para seu governo.

Em pleno outono, todo mundo elegante e agasalhado; muitos velhos, nos bairros, e no centro, a juventude. Lá se encontra a famosa Universidade, a mais antiga de Europa, alternando seus locais de ensino com lojas e escritórios, em construções cheias de arcos, becos e quebradas. Duas altas torres de tijolo exposto, no final da avenida principal, são as presenças vivas da História. Em torno delas, um labirinto de ruelas e igrejas avulsas.

Um par de dias antes, passeando, tínhamos nos deparado com um grupo de moças festejando, algumas delas, com uma coroa de louros na cabeça. Aprovadas no último exame, elas eram advogadas novinhas em folha, propriamente. Seguindo a tradição, nos convidaram com uma bolacha e um copo de grappa, e mereceram os nossos parabéns.

Foi assim que, numa tarde fria de quinta-feira, começamos perguntando na Faculdade de Direito, onde ninguém conhecia o Departamento de Ciências Humanas, ou coisa do gênero. Quando eu disse que estava procurando Umberto Eco, as recepcionistas caíram na gargalhada. Logo na seqüência, nas Letras, uma simpática senhora deu a informação exata sobre o escritório da ilustre figura, e até um mapa xerocado para evitar se perder no traçado irregular das ruas medievais.

Chegamos na via Marsala, 24, uma casa cuja frente era um gigantesco portão de ferro fundido. Ninguém respondeu o interfone, mas abriram. Primeiro, um amplo espaço pouco iluminado; depois, um pátio renascentista, e uma escadaria de mármore gasto subindo à esquerda. Lá encima, uma enorme porta de madeira discretamente aberta. Dentro, um jovem, trabalhando numa escrivaninha, deu uma resposta afirmativa e chamou a secretaria.

Apareceu uma senhorinha muito educada, nos informando que o professor estava, sim, embora com compromisso marcado. Expliquei a minha presença circunstancial, e que apenas queria deixar meus cumprimentos, e um envelope. Nele, tinha uma carta dizendo quem eu era, dois livros meus (No olho do Outro e Tango malandro), e a revista do COGEAE onde está o programa do curso de especialização Semiótica psicanalítica – Clínica da cultura.

Ela pediu para esperar um instante e, pouco depois, a porta se abriu para dar passo a Umberto Eco em pessoa, 3D, carne, osso, barba e barriga, vestindo Armani dos pés à cabeça, com um sorriso largo, acenando para entrar. Sentamos nas poltronas de uma das salas; na outra, dividida por uma arcada, tinha uma mesa de trabalho, um abajur, estantes cheias de livros, gravuras nas paredes.

Gratamente surpreso com tanta simpatia, comecei dizendo que falaria em português, para não maltratar o vernáculo. Replicando, ele disse que, então, aproveitaria para falar em portunhol, e se despachou com várias frases louvando o Brasil. Comentei que, nestas terras, muitos eram seus admiradores, e sua obra, lida e citada, fazia parte da bibliografia de todos os cursos de comunicação e semiótica. Mais, ainda: falando performativamente em nome da PUC-SP, eu estava lhe fazendo um convite para visitar o nosso programa, e ter a honra de ouvi-lo numa aula magistral.

Ele assentiu, e pediu licença para falar em italiano. Primeiro agradeceu, e depois explicou que vir para o Brasil também fazia parte do seu desejo, embora não pudesse ser realizado num curto prazo. Enfatizou que amava esta terra, que já tinha viajado de Foz até Belém, que tinha muitos amigos por aqui, onde tudo era tão bom que, para curtir de verdade, precisaria de pelo menos um mês. Lamentou não dispor desse tempo de férias, como tampouco topava uma viagem-relâmpago, proposta do editor brasileiro em cada Feira do Livro.

Perguntou se eu conhecia Eliseo Verón, o mais destacado representante da semiótica argentina. Respondi que sim, como leitor. Rindo muito, disse que era um grande amigo, tão inteligente que organizava seus colóquios em Pernambuco, à beira da praia! Dava para perceber que o douto personagem se encontrava num excelente humor naquele dia, de bem com a vida, jupiteriano e expansivo.

Quando eu disse que era psicanalista, ele já sabia, pois lera na carta. Perguntou como tinha me aproximado da semiótica. Contei do meu percurso universitário, e da necessidade teórica de articular a semiótica e a psicanálise num discurso consistente, capaz de interpretar os fenômenos da cultura. O distinto concordou com uma frase a la bolonhesa: L´unconscio è l´altra faciatta dell segno, e um gesto, a mão girando em espiral. Numa tradução macarrônica, o inconsciente é a outra cena do signo.

Eco usou como ilustração seus dois últimos livros, a História da beleza, e a História da feiúra, recém lançado. Tinha se divertido mais trabalhando no segundo, cuja diversidade superava o primeiro. Enquanto o belo é sempre harmonioso, proporcionado, moderado, sem nunca fugir de certos limites formais, seu oposto dialético é desmesurado, insólito, grotesco, num espectro maior de possibilidades. A feiúra vira a estética pelo avesso, como se fosse um pesadelo da razão, desafiando a indiferença.

Voltando para a fenomenologia da situação, era incrível o que estava acontecendo: Umberto Eco, na nossa frente, falando com paixão sobre seu trabalho e suas preferências. O privilegio de escutá-lo me levou a demandar um esclarecimento em relação a um seminário seu, no mês anterior, intitulado Sobre a alma dos animais – Introdução a zôo-semiótica. Eu tinha visto na Internet, e não fazia a menor idéia do que poderia ser, mas despertara a minha curiosidade.

Ele explicou que teria sido apenas um começo de investigação, logo abandonado, pela impossibilidade de dar conta da extensa bibliografia sobre o assunto. Só no Ocidente, havia bibliotecas inteiras dedicadas aos argumentos defendidos em duas grandes épocas. Até Descartes, a discussão era se os animais, seres vivos, participantes da Criação, teriam alma. A partir do método cartesiano, a questão era saber se os bichos se comportam como máquinas naturais. As cobaias seriam o exemplo paradigmático da era da ciência.

Todavia, as opiniões eram tantas, e tanto para ser lido e resenhado, que a empreitada nunca teria fim. Foi a minha vez de sugerir que também poderiam ser acrescentadas as referências animalescas na obra freudiana: O Homem dos Ratos, o Homem dos Lobos, o cavalo do pequeno Hans, e outros casos clínicos. Sem esquecer de Totem e tabu, complementou, apontando uma nova linha de pesquisa.

Depois de uma bela meia hora, ouvimos, de leve, uma batida na porta. A secretária entrou com três dedos em riste, falando: Tre minute! Levantamos, reiterei o convite, e ele disse que, se fosse possível, seria um grande prazer. Agradeceu os livros, acompanhou até a saída, e nos despediu com tapinhas nas costas.

Meu filho e eu saímos dali em alfa. Na rua, beatificados e bestificados, sem conseguir dizer nada, nos olhamos, ver para crer. E só então, e ao mesmo tempo, lembramos das câmeras digitais que carregávamos, perfeitas para eternizar o acontecimento, mas ambas esquecidas, eclipsadas pela emoção.

Sem foto não tem fato, pensei em voz alta, apenas a minha palavra como sujeito agente e narrador parcial. Quem acreditaria que foi deste jeito, tão ameno? Yuri se prontificou como testemunha: ele estava lá, fez parte da cena, daria fé. Achei interessante a idéia de um filho poder ser avalista do pai, e a recíproca, também verdadeira. Pois então, tudo de bom: por último, o que vale é a versão, e não o feito, para sempre guardado no photoshop da memória. Se vero, bene trovato.

3 comentários:

Luiz disse...

Quem me dera, quem me dera...

Sinta-se afortunado mesmo, vai poder dizer, no futuro, que trocou algumas palavras com um dos grandes gênios de nosso tempo.

Excelente relato, parabéns!

Oscar Cesarotto disse...

Caro Luiz César,

Agradecemos a preferência! Volte sempre!

Roberto Comodo disse...

Este relato só pode ecoar uma
exclamação:
Ecco Homem,

Abraços,