Oscar Cesarotto & Roberto Comodo
Um dia, o imortal morreu, depois de ter assoprado mais de uma centena de velas. Conheceu a glória, merecida, e sua fama não foi infame, por ter sido bonafide e helvécio como um chocolate, um banco, um relógio, ou Wilhelm Tell, todos precisos e preciosos. Em outras palavras, um cientista 100%, digno de um prêmio Nobel, que nunca foi um agitador ou uma celebridade. Teria sido o pai da era psicodélica, por sintetizar a chave das portas da percepção, sem que a sua intenção fosse escancarar, e muito menos, arrombar. O destino, porém, determinou que fosse ele quem olhasse pelo olho da fechadura.
Um dia, o imortal morreu, depois de ter assoprado mais de uma centena de velas. Conheceu a glória, merecida, e sua fama não foi infame, por ter sido bonafide e helvécio como um chocolate, um banco, um relógio, ou Wilhelm Tell, todos precisos e preciosos. Em outras palavras, um cientista 100%, digno de um prêmio Nobel, que nunca foi um agitador ou uma celebridade. Teria sido o pai da era psicodélica, por sintetizar a chave das portas da percepção, sem que a sua intenção fosse escancarar, e muito menos, arrombar. O destino, porém, determinou que fosse ele quem olhasse pelo olho da fechadura.
Conta a lenda que, em 1943, Júpiter (ou a divindade favorita do leitor), quis que um respingo de Sua Mão, salpicado ao acaso e ao azar pela Sua Divina & Incognoscível Vontade & Desejo, tocasse a pele do jovem pesquisador e recém doutor, como no teto da Capela Sistina. Depois de bater o ponto, saiu do laboratório, e naquela tarde de sol ameno, pegou sua bicicleta branca (The White Bicicle, um símbolo desde os sixties), e rumou para o lar. Quando chegou, horas depois, não era mais o mesmo, e a cultura de Ocidente, nas seguintes décadas, também não.
Outra lenda afirma que Timothy Leary (psicólogo emérito, PhD em Harvard), teria explicado que o mesmo composto, quando destilado anos antes daquela tarde, não teria produzido nada, e depois sim, por que no ínterim, a grande novidade no nosso planeta foi o começo da era nuclear, com as primeiras explosões atômicas mudando estruturas moleculares que nunca mais seriam as mesmas.
Uma nova Outra Cena descortinou-se a partir de então. O Teatro da História montou uma peça “muito louca”, criada por Hofmann, mas, em grande parte, interpretada por Leary. E deu no que deu: cana para o segundo, e o desabafo parental, o livro L.S.D. Meu filho problema, do primeiro. De fato, não foi por sua culpa que a revolução cultural virou caso de polícia e, evidentemente, a proibição total do uso do ácido lisérgico, para fins científicos ou recreativos, em 1966, foi um divisor de águas.
Demasiado aconteceu a partir de então; muito já foi escrito, e ainda mais será. O propósito deste texto, para além do reconhecimento ao grande homem, inclui uma reflexão sobre algumas questões que o vento levou. Para começar, a interdição, as modas e os escândalos, acabaram com as pesquisas universitárias sobre as atividades mentais turbinadas pela substância, e isto pode ser considerado um saldo negativo, de um amplo ponto de vista. Com ácido, ou sem, com qualquer aditivo ou com nenhum, é tão pouco o que ainda se sabe sobre o psiquismo humano, que barrar algum caminho, por controverso que seja, é sempre um pecado epistemológico.
Do ponto de vista da saúde mental, na primeira metade dos 60, o L.S.D. 25 era usado, com sucesso, no tratamento do alcoolismo. Seu efeito despertador tirava as pessoas da embriaguez etílica, do sono existencial que a bebida proporciona, ao preço de estragar a vida do bebum. Hoje se sabe mais do que suficiente sobre os malefícios do álcool, e alguns aspectos relevantes devem ser destacados:
1. Faz bastante tempo que o alcoolismo é conhecido, estudado e tratado como doença; atualmente, diagnosticada como “dependência química”. Entretanto, as curas químicas são as que menos dão certo, em proporção e duração.
2. São inúmeros os ex-bêbados que conseguem sê-lo por que agora são crentes e devotos, não importa de qual religião. Qualquer uma, aquela que, com uma boa acolhida, lhes permitiu receber amor, um novo sentido para a vida, sentimento de pertinência, arrependimento e outra identidade. Aleluia!
3. As entidades laicas podem ser tão boas quanto, e os A.A. (Alcoólatras Anônimos), nem precisam divulgar seus nomes para sair do pileque. Com versões locais em vários países, para além das diferenças lingüísticas e culturais, o programa dos 10 passos permite que muitos façam caminho ao andar.
4. Todas as nações têm estatísticas demográficas que mostram e provam quantas pessoas se ferram por ano por causa da marvada, e quanto isso custa ao erário público, entre tantas outras considerações sócio-econômicas e demais responsabilidades do Estado.
5. As companhias de seguro ficam tranqüilas, por que têm cobertura: se houver birita no sinistro, elas não pagam nada.
Esta é a ponta do iceberg que o álcool representa como sintoma na cultura mundial, globalizada para sempre, e desde muito antes, da cultura ocidental & cristã. Não é este o lugar para discutir tantos problemas interdisciplinares; apenas lembrar o importante que seria poder curar a população da cirrose, física, mental e espiritual. Dos exemplos citados, desprende-se a hipótese de que, embora o vício seja químico e afete as moléculas, uma saída poderia ser pelo resgate da subjetividade, e que isso se processa pelas vias do Simbólico e do Imaginário, quando a ação conjunta modifica o Real, de forma positiva.
As experiências psicodélicas também foram bem sucedidas no tratamento de intoxicações com drogas pesadas, em especial, a heroína. E, como demonstram as pesquisas do psiquiatra tcheco Stanislaw Grof, nos anos 70 e 80, o LSD teve ótimos resultados na terapia de crianças autistas e pessoas esquizofrênicas.
Qual seria o papel do LSD em tudo isto? É óbvio que age quimicamente, mas sabe-se que, chegando no miolo, fica ali apenas por 40 minutos, para se despedir e ser despedida logo, e eliminada pela urina. Em princípio, não se trata de uma droga aditiva. Embora ao longo do tempo algumas pessoas tenham tomado assiduamente, por motivos extra-terápicos (Casuística Pop: John Lennon, Rita Lee, Ozzy Osbourne, e outros veteranos day-trippers confessos), o soma não se habitua nem fica dependente, e o usuário não precisa virar refém ou freguês. A cuca, entretanto, pode ir para as cucuias, e para muitas pessoas bastou one bad trip para afastá-las das viagens de risco para toda a eternidade, vidas presentes e/ou futuras.
Pode-se conjeturar, destarte, que age como um gatilho sináptico, ligando quaquilhões de neurônios, em série e em paralelo, potencializando a mente de maneiras inéditas. Parece funcionar como um catalisador, que atua apenas por presença, possibilitando e disparando a reação, sem participar dela. Uma chave capaz de abrir as portas do Céu e do Inferno, como advertiram William Blake e Aldous Huxley. E muitas outras metáforas.
Este que é o ponto. Gatilho, catalisador, chave, são apenas metáforas, e hipóteses retóricas, intuídas por leigos. As comprovações concretas deveriam vir dos laboratórios, só que, por ser proibido, não se pesquisa. Por outro lado, são tantos os depoimentos dos viajantes, testemunhais ou literários, que valeria a pena ler e escutar, antes de tratar aqueles sujeitos como contraventores ou doentes. Tudo isto se perdeu nas batalhas políticas e culturais do final do milênio passado. Em algum momento, veio a publico que a C.I.A. teria investigado seu poder, para finalidades bélicas de amplo espectro: ofensivas, de controle, de lavagem cerebral, ou para otimizar processos de interrogatório e tortura. Estes estudos do mal, entretanto, nunca foram mostrados. Poderiam ser úteis, admitindo com frieza que até o Doktor Menguele fez a Medicina progredir.
O maior pesar -pessoal, para Hofmann, e por extensão, para toda a civilização-, é que o L.S.D. tenha sido posto sob o auspício de Tânatos. Seu descobridor e inventor, sem ser médico -nem guru, nem bicho-grilo-, sempre considerou o fruto do seu trabalho como um remédio. O mau uso e as péssimas intenções o fizeram sofrer mais do que uma dúzia de hippies que acreditaram poder voar de verdade, e saíram pela janela. (E era verdade, podiam voar. Pena que não previram que poderiam cair.)
Ecce homo, sic transit gloria mundi. Data vênia, carpe diem: mens allucinata in corpore sano. Assim caminha a Humanidade: aos pulinhos, dando cambalhotas, e avançando para trás. As últimas têm sido as décadas do cérebro, mas as neurociências se interessaram mais pela demarcação e pelo loteamento da mente, do que pela sua expansão e a investigação das potencialidades para uso pacífico e fins terapêuticos.
Para multiplicar as homenagens póstumas, convocamos a Norman Mailer, ido também neste ano. Durante toda a sua vida pública, se definiu como um “conservador de esquerda”. Tirante o oxímoro, proposital pour épater les bourgouais, sua posição política seria tão defensável como louvável, e também exemplar. Agora que o futuro já chegou ou, pelo menos, o século XXI, convém não esquecer do século XX é a nossa Antigüidade clássica, da qual temos muito para aprender, avaliando os êxitos e os erros históricos em perspectiva, e resgatando aquilo que foi (teria sido, pode ter sido, seria se fosse, ainda pode ser...) útil para o Bem comum.
Em função disto tudo, pode-se argumentar a favor da legitimidade das pesquisas específicas, e a necessidade de continuá-las, o melhor tributo possível para um cientista, para o progresso da ciência e da sociedade. Para maior conhecimento da psicologia humana, em nome da saúde, pública, privada e individual.
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(Transcrição da NOTA 7, do capítulo “Estilhaços”, do livro Contos sinistros-E.T.A. Hoffmann / No olho do Outro – O. Cesarotto (Editora Max Limonad, São Paulo, 1987). NOTA 8, na edição da Editora Iluminuras, São Paulo, 1996, No olho do Outro – “O Homem da Areia” segundo Hoffmann, Freud & Gaiman, de Oscar Cesarotto.)
Segundo Jean Louis Brau, na sua Historia de las drogas (Editora Bruguera, Madri, 1970), a eteromania foi um costume bastante difundido no século dezenove em países como a Alemanha e a Noruega. Os mais chegados a este tipo de embriaguez, bebiam as chamadas “gotas de Hoffmann”, uma mistura de partes iguais de éter e álcool, geralmente utilizadas para reanimar os desmaiados. Por via oral -e não inaladas, como seria a prescrição-, seus efeitos eram imediatos: estupor, alegria inebriante, dupla visão da realidade. Sua denominação era, explicitamente, uma homenagem popular a quem descrevera estas sensações.
Misteriosos são os caminhos do significante. Do livro citado, mais uma curiosidade: A substância alucinógena conhecida como L.S.D. 25 foi sintetizada, em 1938, por um químico suíço, Albert Hofmann, o primeiro a testar seus efeitos, seguido por todos os habitantes do cantão onde ficava o laboratório Sandoz, que nunca abriram mão da democracia direta.
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R.I.P. – The final trip
As presentes reflexões não levam em consideração uma porção de assuntos importantes, algumas sérios, e outros, mais divertidos, da história das mentalidades. Deixemos a inevitável psicodelização da cultura planetária para ser estudada pelos especialistas de diversas áreas das ciências humanas. E para além das ilusões e das alucinações, cabe aqui o respeito a um técnico que virou humanista, e que viveu toda a longa vida que lhe foi agraciada em completa lucidez, participando, até seus últimos dias, do Comitê sueco do Prêmio Nobel, na seleta companhia de figuras notórias, distinto de todos. Firme & forte, se isto foi graças ao seu filho dileto, não se sabe. Somente se conhece sua primeira viagem.
Nos anos seguintes, analisou e sintetizou diversas plantas e sementes psico-ativas, de épocas pretéritas e etnias perdidas, desvendando enigmas milenares, como os rituais pré-colombianos baseados na ingestão de ololiuqui (morning glory), e identificando a bebida dos deuses que abria os Mistérios de Eléusis, na Grécia antiga. Querido por muitos, manteve o bom humor até o fim, e as dopaminas na medida certa.
Muitas vezes, é tão-só depois da morte do pai que o seu legado ganha eficácia simbólica. Então, a sua memória será honrada, quando as novas gerações continuarem a obra aberta.
Bom voyage.
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