quarta-feira, 23 de julho de 2008

MONDO CANE

Não gosto tanto de cachorros, ou até posso gostar, mas não curto. Prefiro vê-los em fotos ou filmes, bem de longe. Em perspectiva, eles são muito bonitos, todas as raças e marcas. Fiquem por aí.

No entanto, um dos problemas que os cães oferecem aos humanos, seus donos e os vizinhos destes, é a maximização de saco à distância, quando começam a latir sem parar. Não se precisa conhecer o animal para fazer parte dos seus decibéis, porque ele também, sem precisar nos conhecer, nos faz participantes do seu mundo, atrapalhando o nosso. E quem não vê cão, mas tem coração, tem suas palpitações alteradas pelos latidos. Um ladrão, um gato, uma cachorra quente, um desafio entre repentistas caninos, um brain storming no canil, o leilão público de algum osso cobiçado, uma discussão acalorada sobre a demarcação dos territórios, sempre problemática como decorrência do método do mijo sobre mijo? Bom, às vezes é histeria, mas também pode ser alegria.

Aqui faço um reconhecimento a um item de excelência que eles têm, superando até os gatos no quesito. Para manifestar, de maneira contagiante, o contentamento, a euforia e a camaradagem, não tem rivais. Nesses momentos, o barulho pode incomodar, mas quem está por perto não fica indiferente. Ainda mais, quando vem acompanhado de linguagem gestual: o abanamento maníaco do rabo.

Num comentário guardado para a posteridade por quem ouviu, Gurdgieff teria dito, olhando como um cachorro defecava, deixando seu corpo ondular para se aliviar e se liberar, que se ele conseguisse ensinar apenas isso aos seus discípulos, ficaria satisfeito por ter cumprido com sua função de mestre. Outro guru, que hoje responde pela logo-marca Osho, mas que alguma vez foi Rajneesh, dizia que a sua missão era transformar todo mundo, especialmente os americanos, em italianos, porque só estes últimos sabem viver.

No entanto, enquanto Fido goza cocozando, seus dejetos são cosa nostra. Não tem nada mais humano que o côcô de cachorro, nos espaços comuns a ambos.

Pelo contrato implícito de convivência doméstica, as necessidades biológicas de uma espécie viram necessidades da outra, diferentes, mas igualmente urgentes. (Os donos ou as donas poderiam estar com o intestino preso durante semanas; mesmo assim, cada dia, e mais de uma vez por dia, vão ter de levar a mascote para resolver sua digestão, e não a deles, à vista de todos, deixando um duvidoso presente urbano que, no final das contas, será de sua total responsabilidade cidadã.)

As calçadas foram feitas para os pedestres, e quem tem quatro pés, ou patas, teria mais direitos? Não só pelas deposições; no final das contas, todo ser vivo tem direito a descomer. (Vivendo no mato, com ou sem dono, a questão seria a mesma, sem ser um problema.) Entretanto, a recíproca pode não ser verdadeira. O hominídeo precisa resolver o que fazer e como evitar as fezes caninas, ainda que as suas e as próprias possam não ser repugnantes para aqueles.

Talvez não exista a amizade 100% pura, sem um pouco de ambivalência. Os melhores amigos não são amigos de todos, e os inimigos dos nossos inimigos podem nos fazem companhia, mas tampouco são mui amigos. Muitos gostam dos bons companheiros, ainda que, de vez em quando, levem uma mordida. O outro espécime, tão parecido, mas tão diferente de nós, é amado e adiado intermitentemente por muitos, detestado por alguns, e suportado por tantos outros. Com certeza, as suas virtudes superam os seus defeitos. Milênios de boa parceria não podem ser desmentidos; porém, será que hoje é como sempre foi, ou alguma coisa está mudando. É provável que já tenha mudado, sem que se possa saber, por enquanto, se para melhor ou para pior.

Não só a quantidade muda à qualidade: a qualidade também modifica a quantidade. Daí que algumas amizades podem ser bastante desequilibradas. Isto, entre as pessoas. O que dizer, entre espécies? Este é um bom momento para pensar as heranças do século XX, para conjecturar as tendências do XXI. Assim caminha a humanidade, mas para onde vai a matilha? Qual é o lugar do canis-is na LCdCdTCTdHMLdSEdCG ? (*) (**)


(Continua)

(*) Lógica cultural de consumo do turbo-capitalismo tardio da hiper-modernidade líquida da sociedade do espetáculo da civilização globalizada.

(**) Pufa! Não tem um apelido mais breve para o terceiro milheiro?

Um comentário:

Roberto Comodo disse...

Caro Oscar,

Os cães ladram e a
caravana passa.,

Abraxas,

Roperto