terça-feira, 26 de agosto de 2008

Marquês de Sade




A posteridade nunca foi muito justa com Sade, tantas vezes considerado apenas com um pornógrafo, apesar de todos os seus esforços como livre-pensador. Segundo Lacan, ele teve a eminente função de retificar a posição da ética, abrindo caminho para o discurso vindouro da ciência positiva. Este teria sido o exemplo iniciático do tocador sadeano, comparável à Academia, ao Liceu, ou à Stoa da Antigüidade. Por esse viés, A filosofia na alcova, um dos textos capitais do Divino Marquês, parece – avant la lettre – dialogar telepaticamente com a Crítica da razão prática, de Kant.

Ali, o fundamento da prática da razão pura assim era enunciado: age de tal maneira que a máxima de tua vontade possa valer sempre como princípio de uma legislação universal.

Todavia, no seu peculiar estilo, Sade afirmava: tenho o direito de gozar de teu corpo, e hei de exercê-lo sem que limite nenhum me detenha no capricho das exigências que me dê vontade de saciar nele. Por esta regra, pretende-se a submissão da vontade de todos, desde que uma sociedade a torne efetiva, pelo seu caráter obrigatório.

O imperativo categórico, presente nos sistemas que se desprendem dos livros de ambos pensadores, acaba por posicioná-los como debatedores de uma mesma questão: a redução da lei à norma, isto é, a defasagem entre a lei moral e a moral social.

Debochado, porém sério, Sade propunha, de modo kantiano, uma relação entre a moral uniforme do homem natural e os desideratos da Revolução Francesa: para ser verdadeiramente republicano, o cidadão devia ser ateu até às últimas conseqüências.

Nas suas argumentações, o ateísmo racional era apresentado, em primeiro lugar, como herdeiro das crenças monoteístas, das quais manteria a economia unitária da alma, junto com a propriedade e identidade de um eu responsável; em segundo, poderia ser promovido à alçada de uma religião; por último, e como corolário, a razão, no espírito revolucionário, seria convertida em um deus.

Por estas e outras, pode ser sintetizada numa única imagem uma miríade de palavras: no final do filme Contos proibidos do Marquês de Sade, quando um padre aproxima um crucifixo do personagem principal, que não é outro senão o próprio libertino, agora agonizante, é perfeitamente coerente que este o engula, evidenciando, naquele gesto, seu verdadeiro desejo, impenitente e blasfemo.

Os sofismas e anátemas reunidos no presente volume, escritos há séculos, conservam hoje a virulência de então, comprovando como o futuro de uma ilusão continua sendo chamado de religião. Pois, para todos os efeitos, se Deus existisse, com certeza seria bastante sádico...

Um comentário:

João A Fantini disse...

grande Oscar. acho que vou roubar este texto e colocar no meu blog. tudo bem?