N. N.
Contarei o meu calvário, e como fui ficando calvo na pós-modernidade. Durante longos anos, eu fui viciado em DVDs. Todos os dias, ou melhor (ou pior), todas as noites, pelo menos um, e, muitas vezes, mais de um. Como a oferta era inesgotável, queria sempre mais. Tendo esgotado várias locadoras, parti para a pirataria passiva, um dos novos pecados do capitalismo cristão. E nem ouso falar da pornografia, a tentação da transgressão consentida do sexo solitário, um capítulo à parte e censurado.
Foi uma época importante da minha vida, que me mudou bastante e me permitiu ganhar muito. Cultura cinematográfica e peso, sobretudo. Meu biorritmo ficou formatado em função do vídeo. Minhas horas de sono, administradas em detrimento do repouso e dos sonhos. Sonhos? Quem precisa deles se antes de dormir é incorporado um comprimido ficcional made in Hollywood, um baita resto diurno que dispensa a elaboração onírica?
Se a vida é sonho, que vivam por mim, mas eu precisava dormir. As madrugadas chegavam antes, e o dia também, e pouco descansava, cada vez menos. Meu comportamento diurno foi afetado. Meus olhos fechavam durante a jornada, e os colegas me chamavam de Soneca; de quebra, tirando sarro da minha baixa altura (e cada vez menor auto-estima). Depois de alguns meses, meu desempenho caiu tanto que fui mandado embora por justa causa.
Foi então que o Inferno vestiu o terno e o Diabo calçou as botas. Com a grana do fundo de garantia que consegui negociar (nunca vou saber se eles foram bonzinhos, me pagando a metade, ou filhos das putas, me roubando a metade), me senti livre como um pombo-giro e feliz como um pintinho no lixo. E me empanturrei de lixo cultural. Primeiro, fiz uma planilha no computador, calculando e dividindo o pecúlio em prestações, semestres, contas a pagar, tudo prolixo. Só a partir de então, com o futuro garantido a médio prazo, que me senti no direito adquirido de começar a desfrutar da minha aposentadoria privada.
Fiz o que, no momento, pareciam ser os investimentos mais lógicos: comprei um caríssimo home theatre, e fiz do meu lar um palco, onde eram representadas mil vidas, enquanto a minha escorria no sofá. Só faltava algo mais pior. Foi exatamente a partir daquela época que começou a comercialização dos seriados americanos, empacotados por temporadas. Para quem não assistia TV aberta ou acabada, um prato cheio. Ou melhor, aos pesares, um fast-food gringo, montado como um quilo mineiro: sirva-se você mesmo a si próprio, seu bolso é o limite; para locação ou para compra, o cartão de fidelidade permite levar agora e pagar na devolução, ou na chegada fatídica da fatura fatal.
Com o rombo no orçamento, também chegaram os malefícios secundários. Em primeiro lugar, que a oferta determina a demanda e que ambas são inesgotáveis, isto logo eu soube. Algumas, e, em seguida, centenas de opções, que num triz foram milhares, se reproduzindo em pequenos espaços, invadindo Kitty, a minha chinete. Caixas e mais caixas, locupletando a minha privacidade, ocupando lugar nas prateleiras e estantes, nas mesas, cadeiras, camas, criados-mudos, bidês... Em mais de uma ocasião, comi, dormi e fiz algumas necessidades básicas encima delas.
Não posso deixar de mencionar o aspecto deletério do conteúdo dos filmes. Se, no conjunto da obra, não contribuíram para melhorar a saúde, pioraram sensivelmente a minha sanidade mental. Meus olhos famintos foram hiper alimentados, minha imaginação chafurdou na lama, porque tanta lama me era oferecida. Filmes de guerras, históricas ou fictícias, cardápios de truculências & mensagens patrióticas; o gênero policial (por sua vez, um sub-gênero homo-erótico sublimado, cheio de casais de homens públicos que se amam enquanto matam vilões, e o longo braço da lei termina sempre numa mão boba federal; cereal killers transgênicos; faroestes espaguetis alla bolonhesa com ketchup fake; comédias meia boca para classes médias de meia idade, causando cáries e sorrisos amarelos; tragédias & melodramas calculados para encharcar lenços & calcinhas; lágrimas & melecas nas melhores bio-pics...
Mas sem esquecer dos shows filmados, gravados e trucados, e dos clips, dos documentários e dos making ofs, do dolby 5.1, e do aparelho reprodutor de quatro cabeças, e um único corpo, cavernoso. Meu lar foi se transformando na caverna dos Flintstones, com os eletrodomésticos high tech dos Jetsons (porque também estão à venda todos os tipos de desenhos animados, dos pré-históricos e nostálgicos, remasterizados, até os da última geração, remixados em 3D. Not so bad. Nunca é tarde para uma infância feliz), e as mazelas dos Simpsons, a verdadeira família futurama, sempre presentes imperfeitos.
Quando chegaram os pacotes de Natal, as promoções sazonais, e a possibilidade de pegar 2 estréias e 3 fitas do catálogo e entregar só na segunda, eu entreguei os pontos, junto com os tickets. Foi justo na semana em que seria distribuída a coleção de James Bond, num packging maravilhoso, tudo numa pasta 007, custando um ovo e a metade do outro. Renunciando ao consumo, salvei o mundo livre.
Minha vida só mudou quando eu mudei de vida. Tomada a decisão, tirei o aparelho da tomada. Never more. Não tive síndrome de abstinência; apenas alguns pesadelos, que compensavam os filmes de zumbis que não estava vendo. Comecei a dormir mais cedo o sonho dos justos, e voltei a ter sonhos pecadores. E as minhas dores, musculares e da alma, das pálpebras às pletoras, desapareceram sem deixar traço no ibope. As manipulações auto-induzidas orgasticamente naturais em suportes externos (M.A.I.O.N.E.S.E.) cessaram, com a imediata diminuição dos triglicéridos e do colesterol de péssima reputação, e foram substituídas por emissões noturnas espontâneas, baseadas em desejos e fantasias da própria horta, incluindo adubos & minhocas, e todos os retornos do meu próprio recalcado, customizados e de graça.
Uma outra cena acenou para mim, e deixei de ser espectador para ser de novo ator, agente, e sujeito dividido, mas não tão alienado, além de deitar mais cedo, sem necessidade da chupeta eletrônica. Comecei a acordar ainda mais acesso, depois de ter acessado e atravessado os meus fantasmas, agora desgarrado e alforriado do discurso do Outro. Bom dia, dia.
De madrugada, abro a janela, olho para fora, e se ela quiser se mostrar, vejo a Estrela d´Alba de plantão. Quando ainda não é dia, um luminoso de néon me indica a cada minuto a mudança do tempo. Naturalmente, tem trânsito pesado, e isso me faz pensar que, com exceção de algumas árvores distantes, tudo o que posso ver é resultado de pensamentos, pensamentos ativos que se pensam, onde a função dos sujeitos não é para nada óbvia. Intermitente e escorregadia, a melhor imagem para totalizar o inconsciente é São Paulo cedo de manhã.
Ainda bem. Mas quando chegou a Internet, eu não estava vacinado.
(FINAL INFELIZ)
Saravá. E quando a Internet chegou, eu já estava vacinado.
(FINAL FELIZ))
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Se o leitor quiser conhecer uma versão feminina desta patologia contemporânea, pode ser instrutivo assistir hoje um filme dos anos 90, Who´s that girl, com Liv Tyler, a bela garota capaz de topar qualquer negócio para ter um aparelho de DVD. Mais além do desejo assim explicitado, o que resulta obsceno não é o banal eletrodoméstico colocado no lugar do Bem Supremo, senão que a sua posse cobiçada justificasse tudo, até a morte de alguém (não por acaso, um macho da espécie).
3 comentários:
Olá Oscar,
Infinitas viagem à Sedições no ar.
Gostei do calvário calvo.
Certamente um alvo a que se
destina o pós-moderno.
Oscar,
Chego a seu blog pelas mãos do amigo Roberto Comodo.
Gostei, voltarei sempre, divulgarei e disseminarei.
Longa vida,
Juan
Caro Psicanalista + artista Oscar,
com a sua inteligência de sempre, chegam-me mais formas da sua liberdade de buscar . Ótimo
Cause reboliços,agitações... aponte a caduquice dos significados, seu convite a uma insurreição que supere os velhos litorais é um antidoto ao marasmo que, atualmente, seca a proposta de, como sujeitos, contruírmos
Mais uma vez - bem dita a sua diferença!
Abraços insurretos e solidários
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